Fac-simile do livro STRUWWELPETER contendo a estória da personagem que será tomada como metáfora para o aforismo 20 de Theodor Adorno |
UM ENSAIO A PARTIR DO AFORISMO 20 DA “MÍNIMA MORALIA” -STRUWWELPETER
Tadeu Giatti*
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Introdução
Compreender a dialética que norteia uma sociedade é uma tarefa ingente e que
pressupõe uma sensibilidade e inteligência profundas. Poucos teóricos conseguiram
uma análise com tal agucidade, especialmente no que diz respeito a textos
aparentemente simples, sob a forma de aforismos que, por sua própria dinâmica interna,
pressupõem um grande poder de concisão aliado a uma análise social. Theodor Adorno,
em sua obra Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada, consegue este feito.
A recusa em partir do todo, trabalhando com aforismos, tem sua justificativa: em uma
sociedade na qual a razão objetiva desapareceu e se transformou em pura
irracionalidade, não cabe uma análise globalizante, em seu sentido estrito da realidade.
Partindo dessa ideia, este ensaio pretende discutir um aforismo, o que subjaz a ele, no
sentido de crítica e de conexão necessária entre o pensamento e sua expressão, não
apenas a partir das considerações teóricas de Adorno sobre o tema, mas, principalmente,
tomando como eixo o próprio método aforístico empregado pelo filósofo na obra a
Minima Moralia.
A forma aforística de Adorno e sua relação polifônica com a obra de Heinrich
Hoffmann
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno nasceu em Frankfurt. Era filho de Oscar
Alexander Wiesengrund um próspero negociante alemão de vinhos, de origem judaica e
convertido posteriormente ao protestatismo e de Maria Barbara Calvelli-Adorno – uma
cantora lírica católica italiana. Theodor passou a abreviar seu último nome, utilizando o
nome de solteira de sua mãe como sobrenome (Theodor W. Adorno, ou simplesmente
Theodor Adorno).
*
Mestrando junto ao PPG em Educação Sociocomunitária do UNISAL, u.e. de Americana. Professor de
Língua Portuguesa na rede pública do Estado de São Paulo. E-mail: tadeu_giatti@yahoo.com.br
Revista de Ciências da Educação, ano XV, n. 28, jun 2013 – pp.162-165 Um ensaio a partir do aforismo 20 da “mínima moralia” –T. Giatti
STRUWWELPETER, personagem objeto do aforismo de Adorno |
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O livro, ou melhor, a coleção de aforismos “Minima Moralia” foi composto
dentro do final da II Guerra Mundial (entre os anos de 1944 e 1947), em três partes. É
um livro de Filosofia escrito sob a forma de pequenas sentenças (aforismos), que
retratam um mundo de coisas em poucas linhas. Ou em outras palavras, reflexões de
vários temas com uma profundidade e grau de reflexão muito grande.
O conteúdo dos aforismos tem um fundo muito subjetivo, pois toma por base
que cada leitor deve avaliar e refletir sobre o que leu. Dito isto, podemos dizer que o
aforismo 20 nos coloca diante de um texto enigmático. A começar pelo título.
Necessitamos, antes de tudo, de analisá-lo. O título Der Struwwelpeter ou numa
tradução livre “Pedro de cabeça chacoalhada” faz referência a um livro escrito para
crianças, em alemão, por Heinrich Hoffmann, em 1845. Este trabalho se compõe de 10
histórias ilustradas e ritmadas, principalmente sobre crianças. Cada uma delas objetiva
mostrar uma clara lição de moral sobre as consequências de atos desastrados, que as
crianças criam desnecessariamente. O título da primeira história abarca e dá nome ao
livro como um todo. “Struwwelpeter”, dentro da ótica de Heinrich Hoffmann, descreve
um menino que não cuida de si mesmo de maneira correta e que, consequentemente, é
impopular entre seus pares e amigos. Com isto em mente, como ponto de partida,
procuremos analisar este aforismo número vinte (20) de Adorno.
O particular como expressão da totalidade
O autor inicia o aforismo citando Hume, filósofo inglês (1711-1776), célebre por
seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. Adorno extrai deste teórico um
argumento pragmatista, que se liga à economia de mercado, ao lucro (capitalismo), pois
este sistema econômico é eminentemente prático, vide o refrão que o representa
popularmente: “Tempo é Dinheiro”. Senão vejamos esta outra passagem do aforismo:
”Se o tempo é dinheiro, parece moral poupar tempo, sobretudo o próprio, e desculpa-se
tal poupança com a consideração pelos outros...”
O verbo poupar e poupança aparecem nesta passagem. É uma ideia fixa e
constante para a economia de mercado (capitalismo). Mas poupar e poupança para o
bem comum ou o bem próprio? Solipsismo burguês ou benemerência? Vejamos este
outro: “Que em vez de levantar o chapéu se saúdem com um "olá" de habitual
indiferença, que em vez de cartas se enviem inter office comunications sem cabeçalho e
sem assinatura, são outros tantos sintomas de uma enfermidade do contacto...” Eis uma
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crítica contundente ao petit bourgeois (pequeno burguês) que, imbuído até às entranhas
da economia do mercado, não se preocupa nem em levantar o chapéu ao saudar seus
semelhantes, não se preocupa em enviar cartas, mas sim comunicados mais rápidos
(inter-office communications), que denotam uma enfermidade, aquela que quer ganhar
tempo, eliminando o que seja supérfluo, desnecessário, enfim, tudo o que acarreta perda
de dinheiro deve ser cortado, eliminado da vida do burguês. Mesmo que sejam os
contatos pessoais não vinculados às possibilidades de usufruí-los em termos de “lucro”.
Esta outra passagem é assaz sintomática - “... o tabu de falar só de assuntos
profissionais e a incapacidade de conversa recíproca são, na realidade, a mesma coisa.
Porque tudo é negócio, nada de mencionar o seu nome, como acontece com a corda na
casa do enforcado.” Para Adorno, o capitalismo (economia de livre mercado) conduz à
alienação pessoal e social, não havendo a necessidade de se conversar. A linguagem,
enquanto elemento de comunicação e com sua poética própria, é eliminada e destruída
pelo capitalismo. Isto porque, tudo sendo negócio, não há porque mencionar o nome do
outro, visto que o outro sendo um objeto, algo coisificado, não precisa ser alcançado
pela linguagem, não tem nome, mas sim é um cifrão, um ser alienado.
Entrementes, deve-se perguntar: por que, então, o título deste aforismo é Der
Struwwelpeter?
Como aqui foi discutido, a figura do menino mau preconizada por
Heinrich Hoffmann e que deu título ao seu trabalho, nada mais é do que o capitalista
alienado, sedento de lucro e desprovido de sentimentos mínimos de civilidade, tais
como tirar o chapéu para os semelhantes, conversar com os passantes, enviar cartas,
manifestando o poder da linguagem escrita. Leiamos esta passagem reveladora do
aforismo: ...”Por detrás da pseudodemocrática supressão das fórmulas do trato, da
cortesia antiquada, da conversação inútil e nem sequer injustificadamente suspeita de
palavreado, por detrás da aparente claridade e da transparência das relações humanas
que não toleram qualquer indefinição, anuncia-se a nua crueza.” E o que seria essa nua
crueza? O lucro que nada vê, nada escreve “em vão”, nada conversa, somente coisifica
tudo e todos a seu redor. Em última instância, a nua crueza, que nos cerca neste mundo
pós-moderno do início do século XXI.
Perorando esta análise do aforismo, o próprio Adorno declara: ...”O sentido
prático entre os homens que desaloja entre eles todo o ornamento ideológico,
transformou-se em ideologia para tratar os homens como coisas.” Adorno chega ao
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Nascemos e somos induzidos a consumir, e nos tornamos mercadorias, sem o saber. |
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ponto nevrálgico de seu trabalho – a coisificação do ser humano por outro ser humano,
por ver nele fonte de lucro, de dinheiro, fruto da ideologia capitalista. Ora, não era esta a
postura que nosso Struwwelpeter, nos contos de Hoffmann, tinha, ao ter atitudes
impensadas, que geravam desconforto para os seus companheiros? Não seria chegada a
hora de nossos capitalistas struwwelpeters repensarem esta postura coisificante e a
transformarem-na nestes tempos pós-modernos?
Conclusão
A crítica à indústria cultural e ao sistema social, econômico e político vigente na
época de Adorno, como processos que atuam sobre a subjetividade do ser humano no
sentido de sua deformação, é feita através dos aforismos. O autor mostra, através dele,
como a própria vida está fragmentada, como as atividades e relações humanas
incorporaram a dominação existente enquanto tendência objetiva da sociedade e, desse
modo, também a subjetividade se transforma em algo objetivo, passível de
manipulação, usando a economia de mercado – capitalismo – para tanto. O que há é
uma cisão por que passou a vida humana que se percebe desde então. E é nessa
harmonia entre o estilo denso e um pensamento duro o suficiente para se elevar acima
da realidade, tornando o trabalho, até difícil de ler, de captar seu ponto nevrálgico, o
qual exige justamente uma apresentação marcante como ele, é que reside a beleza e
dignidade das Minima moralia. Não só a crítica se mantém fiel como a denúncia da vida
que sucumbe frente à totalidade do sistema econômico, mas também as formas do texto
se coadunam com essa tentativa de trazer à consciência a falsidade que domina a vida.
Recebido em 02/03/2013
Aprovado em 28/05/2013
Referências
ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada.
Tradução de Luiz Eduardo Bica. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.
HOFFMANN, Heinrich. Struwwelpeter: Merry Stories and Funny Pictures. Disponível
em: http://www.gutenberg.org/ebooks/12116 acesso em mar 2013