sexta-feira, 18 de outubro de 2013


Disponibilizo este texto de meu Orientador, Prof. Dr. Severino Antonio Barbosa sobre a necessidade imprescindível da leitura em suas várias acepções - literária, poética no mundo atual.

A educação e a crise da leitura: uma escuta poética
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The Education and the Reading crisis: a poetic listening
Recebido em: 4 de outubro de 2011
Aprovado em: 22 de dezembro de 2011
Severino Antônio
Professor do Programa de Mestrado em Educação do Centro Universitário Salesiano de
São Paulo. Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
E-mail: severinoantonioeduc@uol.com.br
Resumo
Este artigo faz considerações sobre educação e linguagem, principalmente a linguagem
verbal e sua dimensão de poesia, questionando a crise de leitura em nossa sociedade, em
especial a leitura literária e poética. Faz proposta de re-ligação da leitura com a vida,
como  criação  e  recriação  de  sentido.  O  texto  também  apresenta  sugestões  de
experiências criativas para despertar o gosto de ler e para educar a inteligência e a
sensibilidade do leitor.
Palavras-chave: educação; linguagem; leitura; poesia.
Abstract
This article raises questions about education and language, particularly on the verbal
language  and  its  poetry  dimension,  discussing  the  reading  crisis  in  our  society,
especially the literary and poetic reading. It does yet the proposition to rebind the
reading act with life, as creation and recreation of meaning. The text also presents
suggestions of creative experiences to incite the joy of reading and to educate the
intelligence and sensibility of the reader.
Key-words: education, language, reading, poetry.
Ler o que nunca foi escrito.
Tal leitura é a mais antiga, anterior a toda língua – a
leitura das vísceras, das estrelas, ou das danças. Mais
tarde se constituíram anéis intermediários de uma nova
leitura, runas e hieróglifos.
É possível perceber o mundo como livro, e perceber esse
livro não somente como criptograma a ser decifrado, o
que supõe a inalterabilidade dosconteúdos, mas como
texto a ser escrito – uma escrita que é no fundo uma
reescrita, um reencontro que supõe a ação histórica do
homem.
Walter Benjamin
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Este texto foi desenvolvido para a palestra proferida no Congresso Brasileiro de Escritores, da UBE
(União Brasileira de Escritores) , novembro de 2011
A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo,
é mais que a literatura, leva-nos à dimensão poética da
existência humana.
Revela que habitamos a Terra não só
prosaicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade –, mas também
poeticamente, destinados ao
deslumbramento,
ao amor, ao êxtase.
Edgar Morin
A literatura é a Terra Prometida em que a
linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser.
Ítalo Calvino
Foi mais a ausência de poesia que tornou Auschwitz
possível. Diante da falta de sentido, que gera grande
desesperança, o poeta, por meio do sentimento poético,
poderá persuadir os homens a viver em novo céu e em
nova terra.
Yves Bonnefoy
Será uma quimera pensar numa sociedade que reconcilie
o poema e o ato, que seja palavra viva e palavra vivida,
criação de comunidade e comunidade criadora?
Octávio Paz
Introdução
Constelarmente, as epígrafes falam umas com as outras e com o texto em vir a
ser. Anunciam as questões que movem esta conversa – no sentido etimológico de conversar, dar voltas com os outros– em torno do tema da crise da leitura, principalmente
da leitura literária.
Neste diálogo, fazemos algumas considerações sobre a necessidade de despertar
o desejo de ler – como criação de sentido, em religação com a vida. Em especial,
considerações sobre a necessária redescoberta da poesia – raiz da linguagem, utopia da
palavra  –  como  educação  da  sensibilidade,  da  inteligência,  da  imaginação.  A
convivência com a poesia revela-se também redescoberta da dimensão poética de nossas
vidas.
A necessidade da poesia
Vida toda linguagem
Mário Faustino
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono.
Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária
por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior.
A poesia revela este mundo; cria outro.
Octavio Paz
Como  a  filosofia  para  Merleau-Ponty,  a  experiência  poética  revela-se  um
reaprender a ver. Também nos aproxima dos sentidos nascentes, do nascimento do
mundo para o homem e do nascimento do homem para o mundo, que não se separam da
origem e do destino das palavras.
A experiência poética traz iluminações sobre a natureza da linguagem. Leva-nos
a recordar que as palavras são uma das características diferenciadoras de nossa espécie,
e que elas têm múltiplas dimensões, para além da função de transmitir informações. As
palavras nomeiam o mundo. Nomear é ato de descoberta e criação de sentido. Muito
mais  do  que  um  rótulo,  os  nomes  são  desígnios,  e,  desse  modo,  elaboração  de
conhecimento.
Como  representação  simbólica,  as  palavras  tornam  presente  o  ausente,
possibilitando o pensar e exprimir as coisas e a nós mesmos. São também diálogo,
interlocução em que os sujeitos se constituem, e se reconhecem uns aos outros, uns nos
outros. Representam forma de ação e interação, dos sujeitos entre si, e deles com a
realidade.
Além  disso,  as  palavras  são  formas  de  criação.  Produzidas  social  e
historicamente, também produzem a sociedade e a história. São, ao mesmo tempo,
produto  da  cultura  e  produção  da  cultura.  A  dimensão  criadora  se  revela  mais
visivelmente na literatura, de modo singular na poesia, que é o campo mais concentrado
de sentido, de sentidos, símbolos que geram símbolos.
Dentre inúmeras vozes que reconhecem a necessidade da poesia e da literatura e,
assim,  a  necessária  leitura  poética  e  literária,  escolho  mais  algumas,  em  breve
constelação. No século XIX, em  A defesa da poesia, uma poética fundamental do
Romantismo e do mundo moderno, Percy Shelley faz considerações sobre a função vital
da poesia:  música planetária para ouvidos mortais, a poesia transforma tudo o que
toca, sua secreta alquimia transmuta em ouro potável as águas letais que escorrem da
morte para a vida.Em um ensaio sobre Brecht, na obra Homens em tempos sombrios,
Hannah Arendt conceitua o fazer poético: “a tarefa do poeta é cunhar as palavras pelas
quais vivemos.” (1987, p.212).
Octavio Paz, em  O arco e a lira,  faz uma síntese conceitual, com linguagem
poética:
A palavra é um símbolo que emite símbolos.
O homem é homem graças à linguagem, graças à
metáfora original  que o fez  ser outro e o separou do
mundo natural. O homem é um ser que se criou ao criar
uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora
de si mesmo. (1985, p. 41-42)
Ivonne  Bordelois,  em  A  palavra  ameaçada,  discorre  poeticamente  sobre  a
convivência com a linguagem e a poesia:
Cada vez que abrimos espaços para a reflexão sobre o
sentido escondido das palavras ou para a ponderação da
sábia arquitetura da sintaxe, cada vez que celebramos a
graça  de  uma  piada  verbal  ou  de  uma  adivinha,  uma
estrofe, uma frase ouvida por aí, cada vez que incorremos
no  luxo  desse  passeio  arqueológico  entre  as  ruínas
maravilhosas que é a etimologia, estamos revivendo a
felicidade da linguagem e a possibilidade da poesia, que é
a  criatura  mais  excelsa  da  linguagem,  sua  coroa  de
estrelas. (2005, p.26).
Mais  que  milenarmente,  os  poemas  têm-nos  chamado  à  leitura  e  à  escuta
poética, assim como ao canto e ao corpo que dança. Este é um dos trabalhos que a
literatura realiza para humanidade, trabalho simbólico, criador de cultura.
Em tempos de crise – de sociedade, de cultura, de civilização – a convivência
com os poemas é ainda mais necessária.
Este é um dos poemas que escolhi para compor a obra O visível e o invisível:
A NECESSIDADE DA POESIA
I. o amor está escasso
nestes dias.
o cerco das misérias quase desnatura
as formas novas.
muitas mãos
ainda não se reconhecem.
II. a cota de sonhos em nossa boca
anda quieta.
entre os dentes e o céu
pouco se move a língua.
o ar se oculta
abaixo da garganta.
mas os nascimentos precisam de palavras.
os que nascem, precisam de poemas.
(2008, p. 61)
A perda da poesia e da palavra
As grandes obras de arte e as construções filosóficas
permanecem incompreendidas não por sua distância
grande demais do âmago da experiência humana,
mas pela razão contrária.
Adorno
O desprezo que cerca os melhores poetas é o mesmo
desprezo que cerca e impede a escuta profunda da
linguagem: de fato, esse desprezo não julga os poetas,
mas confirma e condena a surdez e a mediocridade
de sua época.
Ivonne Bordelois
Apesar de a poesia ser vitalmente necessária para a humanização da história, a
leitura  de  poemas  tem  sido  abandonada.  Na  chamada  “era  da  informação”,  da
“sociedade do conhecimento”, a poesia tem sido cada vez mais exilada – pelos poderes
do mercado, pelas lógicas do entretenimento e do consumo descartável, assim como
pelas maquinarias de seduções de propaganda e marketing.
A  indiferença  com  relação  ao  texto  poético  está  relacionada  com  a
desconsideração da literatura, das artes, da filosofia, não reconhecidas como forma
legítima e fecunda de conhecimento.
O  desprezo  pela  poesia  –  simultâneo  à  espoliação  dos  processos  poéticos,
instrumentalizados  nos  textos  publicitários  –  expõe  claramente  a  supremacia  do
conhecimento  técno-científico  e  seu  uso  instrumental,  utilitário  e  acumulador  de
poderes.
Boaventura de Souza Santos faz uma página síntese sobre esse silenciamento,
imposto também à sabedoria prática, à arte de viver e conviver, silenciamento que é
uma das causas da perda de sentido em nosso tempo:
Depois de três séculos de prodigioso desenvolvimento
científico,  torna-se  intoleravelmente  alienante
concluir com Wittgenstein, (...) que a acumulação de
tanto conhecimento sobre o mundo se tenha traduzido
em  tão  pouca  sabedoria  do  mundo,  do  homem
consigo próprio, com os outros, com a natureza. Tal
fato, vê-se agora, deveu-se à hegemonia incondicional
do saber científico e à conseqüente marginalização de
outros  saberes  vigentes  na  sociedade,  tais  como  o
saber religioso, artístico, literário, mítico, poético e
político,  que  em  épocas  anteriores  tinham  em
conjunto sido responsáveis pela sabedoria prática (a
phronesis), ainda que restrita a camadas privilegiadas
da sociedade. A vocação técnica e instrumental do
conhecimento  científico  tornou  possível  a
sobrevivência  do  homem  a  um  nível  nunca  antes
atingido (apesar de a promessa inicial ter ficado muito
aquém  da  promessa  técnica),  mas,  porque
concretizada sem a contribuição de  outros saberes,
aprendemos  a  sobreviver  no  mesmo  processo  e
medida  em  que  deixamos  de  saber  viver.  Um
conhecimento  anônimo  reduziu  a  práxis  à  técnica.
(2003, pág. 147-148).
Essas palavras recomeçadamente relembram o discurso de José Saramago, ao
receber o prêmio Nobel de Literatura, em 1998:
As  injustiças  multiplicam-se,  as  desigualdades  agravam-se,  a
ignorância  cresce,  a  miséria  alastra.  A  mesma  esquizofrênica
humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a
composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de
pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso
próprio semelhante.(SARAMAGO, 1998, s/p).
No final do século XX e nesta primeira década do XXI, a supremacia da técnica
instrumentalizada pelo mercado acentua-se cada vez mais. A desfiguração do humano
assinala-se intensamente na perda da palavra – própria, expressiva, criadora.
Temos falado por slogans, pensado por jargões, imaginado por estereótipos.
Pouco ouvimos nossa própria voz e a voz dos outros.
Nestes dias cada vez mais vertiginosos e fragmentários, somos inundados pelas
últimas novidades e últimas informações – coisas, signos, imagens – quase sempre
confusas, desconexas, sem contextos e sem significação, multiplicadas pelas mídias
ubíquas que não cessam.
Em meados dos anos 80 do século passado, Ítalo Calvino escrevia:
Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha
atingido  a  humanidade  inteira  em  sua  faculdade  mais
característica, ou seja, o uso da palavra, consistindo essa
peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e
de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a
nivelar  a  expressão  em  fórmulas  mais  genéricas,
anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar
os  pontos  expressivos,  a  extinguir  toda  centelha  que
crepite  no  encontro  das  palavras  com  novas
circunstâncias.  Não  me  interessa  aqui  indagar  se  as
origens  dessa  epidemia  devam  ser  pesquisadas  na
política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na
homogeneização  dos  mass-media ou  na  difusão
acadêmica de uma cultura média. O que me interessa são
as  possibilidades  de  salvação.  A  literatura  (e  talvez
somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam
a expansão desse flagelo lingüístico.
Gostaria de acrescentar não ser apenas a linguagem que
parece  atingida  por  essa  pestilência. As  imagens,  por
exemplo,  também  o  foram.  Vivemos  sob  uma  chuva
ininterrupta de imagens; os  media  todo-poderosos não
fazem  outra  coisa  senão  transformar  o  mundo  em
imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos
de  espelhos  –  imagens  que  em  grande  parte  são
destituídas  da  necessidade  interna  que  deveria
caracterizar  toda  imagem,  como  forma  e  como
significado,  como  força  de  impor-se  à  atenção,  como
riqueza  de  significados  possíveis.  Grande  parte  dessa
nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os
sonhos que não deixam traços na memória; o que não se
dissolve é uma sensação de estranheza e mal estar.
Mas  talvez  a  inconsistência  não  esteja  somente  na
linguagem  e  nas  imagens:  está  no  próprio  mundo.  O
vírus ataca a vida das pessoas e a história das nações
torna todas as histórias informes, fortuitas, confusas, sem
princípio nem fim. Meu mal estar advém da perda de
forma que constato na vida, à qual procuro opor a única
defesa  que  consigo  imaginar:  uma  idéia  de  literatura.
(1990, p.72-73).
Nestas décadas que nos separam do texto de Calvino, a crise de perda de sentido
tem  se  agravado  e  aprofundado  em  todos  os  campos  da  cultura  e  da  existência.
Precisamos de renascimentos.
A crise da leitura
As coisas se desfazem,
o centro já não se sustém.
William B. Yeats
A crise da poesia e da palavra é também crise da leitura.
O exílio poético, a peste que desfigura a linguagem, a carência da arte de viver e
conviver, a perda das palavras, o abandono da leitura não são questões relativas apenas
ao grande mundo, ao macro-cosmos do tempo em que vivemos. Essas questões estão
presentes  na  história  de  cada  dia,  de  cada  sujeito.  De  um  modo  mais  claro,
presentificam-se no cotidiano de quem trabalha com as palavras. Assim, um dos campos
que mais explicita a crise é a sala de aula.
Em quarenta anos de trabalho com leitura e redação, e nas constantes conversas
com professores de diferentes partes do país, nunca encontrei tanta perda de sentido
como em nossos dias.
O leitor de olhos livres, que faz leitura criadora, em diálogo com o texto, tem
sido cada vez mais raro. Assim como – no ato de ler e para além dele – é raro o gosto de
pensar pela própria cabeça e falar pela própria boca, assim como é rara a alegria de
aprender, por paixão do conhecimento, na travessia com os livros e para além deles. Os
sinais de desinteresse e desencanto estão em toda parte.
De modo semelhante, no ato de escrever raramente se encontra um texto escrito
com alegria de pensar, alegria de dizer, um texto com rosto, com singularidade, com
sinais de autoria de palavras e de pensamento.
A convivência com a criação poética, a leitura de poemas, é um grande antídoto
para a crise de linguagem, de leitura, de escrita, mas a poesia nunca foi tão ignorada.
Existe a argumentação de que em nenhuma outra época se leu e escreveu tanto,
como  hoje.  Argumentam  que  milhões  de  mensagens  de  texto  são  trocadas
cotidianamente, a todo instante, principalmente pelos jovens. No entanto, é preciso
perguntar: o que está sendo escrito e lido? Como tem sido a escrita e a leitura? Na
maioria das vezes, trata-se de mensagens consumíveis, esquecidas em segundos, em
meio a muitas outras, igualmente descartáveis. À banalização se segue a indiferença.
Essa dispersão se agrava com outra marca do nosso tempo: a avalanche de informações
a que estamos submetidos todos os dias.
Saturados  de  estímulos  e  solicitações,  sob  poderosas  forças  centrífugas  de
dispersão, vamos ficando ao mesmo tempo excitados e entediados.
Por um lado, abrem-se novas possibilidade de conexão, de convivência com a
multiplicidade  de  referências.  Por  outro  lado,  e  ainda  mais,  multiplicam-se  novos
processos de desagregação, perda reflexiva e confusão.
Uma  questão:  que  quadro  sinóptico  poderia  representar  essas  leituras
superficiais,  fragmentadas,  corridas,  dispersivas?  Nelas  não  há  arborização,  nem
rizomas.  Demasiadamente  descontínuas,  elas  se  enveredam  por  ligações  quase
aleatórias, por laços metonímicos com um elemento de outros textos. Muitas vezes essas
leituras se dispersam e não retornam à questão principal, ao tema motivador, ao fluxo do
raciocínio, à tessitura das imagens e dos sentidos. Não raro, elas se esquecem de si
mesmas, do seu próprio motivo de sua realização.
Uma ressalva: ler de modo descontínuo, nômade, passeando com os olhos, em
enumeração  livre  –  e  até  mesmo  caótica  –  pode  ser  um  processo  criativo,  como
momento  de  um  processo  de  criação,  com  algum  grau  de  consciência  ou
intencionalidade. No entanto, se feita de modo irrefletido e indiferente, essa leitura
tende a tornar-se dispersão, ruído e insignificação.
Assim, nas leituras e nas redações escolares tenho constatado que é cada
vez maior a dificuldade de o aluno se concentrar mais profundamente em uma questão,
de modo não apressado nem superficial. Também se evidenciam outras dificuldades,
como  a  de  estabelecer  ou  reconhecer  conexões  sintáticas  mais  elaboradas,  e  a  de
compreender ou arquitetar raciocínios mais complexos. A teia de interações e o tecido
de interdependências, que caracterizam tanto a linguagem como a realidade, vão se
tornando inacessíveis.
Principalmente no campo semântico, cada vez é mais evidente a dificuldade de
interpretar  ou  construir  textos  simbólicos,  em  que  é  necessário  ler  e  pensar  nas
entrelinhas. Etimologicamente, inteligência é  inte-legere: ler dentre as linhas. Legere,
por  sua  vez,  vem  de  recolher,  originariamente  recolher  frutas  e  frutos. A  recolha
pressupõe percepção, análise, seleção, inter-relação, formação de conjuntos. O exercício
de ler, dessa maneira, é um processo de educação da inteligência, assim como da
sensibilidade. A crise da leitura – do mundo e dos textos – é também crise da capacidade
de pensar e de sentir.
Estes são alguns sinais de que se aprofunda e se expande a crise de perda de
sentido, com as palavras, com a leitura, com a existência. Muitos sinais de desencanto.
Em outro texto, Uma nova escuta poética da educação e do conhecimento, ao
escrever sobre a necessidade de poetizar o pedagógico, faço algumas considerações que
tem ressonâncias:
A perda do poético desnuda a perda de sentido, em todos
os campos da existência.
A solidão, e o desenraizamento: já não sentimos o nosso
pertencimento  a  uma  família,  uma  comunidade,  uma
classe  social,  um  povo.  Nem  nosso  pertencimento  à
humanidade, à Terra, ao Cosmos.
A  desfiguração,  e  as  dilacerações:  sem  voz  própria,
partidos, perdemos a imagem do mundo e a nossa própria
imagem;  esquecemos  nossa  história,  quem  realmente
somos, o que genuinamente desejamos, o que precisamos
vir-a-ser.
Errantes em nós mesmos e no mundo errante, precisamos
de  renascimentos.  Precisamos  de  recriação  poética.
(2009, p.121).
A redescoberta da palavra poética
Não existe nada morto
de uma maneira absoluta:
cada sentido terá sua festa de ressurreição.
Problema do grande tempo.
Bakhtin
E, sempre e antes de tudo, nos aproximarmos da poesia
como a zona mais alta e misteriosa da linguagem,
a comprovação mais certeira de sua força mágica
e dos mundos de energia e liberdade
que através dela nos habitam.
Ivonne Bordelois
Cada poema é um campo de produção de sentido, um campo de possíveis, um
mundo de imagens, ritmos, emoções, idéias, nunca um objeto de consumo. Não se reduz
à  mercadoria,  não  tem  finalidade  utilitária  imediata.  O  poema  faz  sentir,  pensar,
imaginar, viver. Isso não pode ser vendido, nem comprado. Esta é uma das razões do
exílio: sua recusa da lógica do entretenimento e do consumismo. Outras razões vêm do
próprio mundo da criação de literatura, de concepções que reduzem o poema a apenas
uma de suas dimensões, como por exemplo a sua dimensão empírica de sonoridade,
com decomposição de palavras, trocadilhos, parônimos, com o abandono da teia de
interações sintáticas e semânticas. Outras razões, ainda, vêm de análises que desnaturam
a linguagem e sua dimensão poética, tratando o texto mecanicamente.
O poema não pode ser tratado de modo instrumental, reduzido a procedimentos
técnicos,  de  fabricação  literária,  seja  de  fórmulas  beletristas  ou  de  modismos
modernistas. Também não pode ser tratado como um corpo morto, a ser autopsiado.
Além disso, é necessário fazer a religação do que não pode ser separado, o som e o
sentido,  assim  como  não  pode  ser  dissociado  o  cognitivo  do  sensitivo,  nem  estes
dissociados das imagens e dos ritmos. A cisão da unidade concreta do poema desfigura
as palavras e sua natureza poética.
Em meados do século XX e nas duas décadas seguintes, circulava muito a idéia
de que a obra de arte falava apenas de si mesma, remetia-se apenas a si mesma.
Muitas  vezes,  essa  concepção  estava  relacionada  com  a  idéia  de  que  o
significado de uma palavra é apenas outra palavra. A essa espécie de autismo das obras
e a esses jogos de espelho da linguagem, sem conexão com a vida, a cultura, a história,
acrescentava-se também a tese, muito comum em vários grupos de vanguarda, de que
“só o incomunicável comunica”: a medida de valor de uma obra era apenas a sua
novidade em termos formais, com o desprezo do campo dos sentidos, o que levou
muitos artistas e movimentos a uma luta incessante de todos contra todos, cada um se
pretendendo  o  proprietário  da  última  novidade  do  mercado  da  criação  e,  assim,
figurando como a última – e única – possibilidade criativa, com o silenciamento de
todas as outras vozes. Com isso, não raro os textos passaram a ser lidos somente por
especialistas, reduzindo dramaticamente a abrangência da leitura e o continente dos
leitores.
Todorov,  que  era  um  dos  principais  pensadores  do  Formalismo  e  do
Estruturalismo, a partir dos anos 80, tem repensado a literatura e a linguagem, em várias
obras. Em A literatura em perigo, faz considerações vitais para nosso tempo de crise da
leitura e de necessidade de renascimento:
Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta
que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me
ajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como
ocorria na adolescência, que me preservasse das feridas
que eu poderia sofrer nos encontros com pessoas reais;
em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz
descobrir mundos que se colocam em continuidade com
essas experiências e me permite melhor compreendê-las.
Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e mais
eloqüente que a vida cotidiana, mas não radicalmente
diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos
a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo.
Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos
dão:  primeiro  nossos  pais,  depois  aqueles  que  nos
cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de
interação  com  os  outros  e,  por  isso,  nos  enriquece
infinitamente.  Ela  nos  proporciona  sensações
insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais
pleno de sentido e belo.
Longe de ser um simples entretenimento, uma distração
reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um
responda melhor à sua vocação de ser humano. (2009, p.
23-24).
Como escrevia poeticamente Höderlin, onde mora o perigo, mora também o que
salva.  A devastadora perda de sentido torna-se necessidade vital de redescoberta e
recriação de sentido. Com isso, engendra novas considerações sobre a poesia, tanto na
compreensão do processo criativo e da obra, como da sua convivência com os leitores.
Trata-se, também, de religação com a vida, de reconhecer a poesia como forma
de conhecimento, de sensibilidade, de pensamento, de imaginação. Forma de interpretar
e transformar a existência. Esta concepção transfigura a experiência da leitura, que se
reconhece como criação de sentido.
Despertar o desejo de ler
Uma forma de felicidade é a leitura.
Jorge Luiz Borges
Ler significa aproximar-se de algo
que acaba de ganhar existência.
Ítalo Calvino
Ao  discorrer  sobre  direitos  humanos  e  literatura,  Antônio  Cândido  fez
considerações que se tornaram, de imediato, referência para pensarmos a necessidade do
acesso à leitura literária ou à sua escuta, como dimensão do processo histórico de
humanização:
Entendo  aqui  por  humanização (...)  o  processo  que
confirma  no  homem  aqueles  traços  que  reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber,  a  boa  disposição  para  com  o  próximo,  o
afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos
problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.
A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos
para a natureza, a sociedade, o semelhante. (1995, p.249)
Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por
um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos
diferentes  níveis  da  cultura. A  distinção  entre  cultura
popular e cultura erudita não deve servir para justificar e
manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista
cultural  a  sociedade  fosse  dividida  em  esferas
incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis
de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito
dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura
em todas  as modalidades  e em  todos  os níveis  é  um
direito inalienável.(1995, p.262,263).
O longo e complexo trabalho de humanizar o homem tem muitas faces. Dentre
elas, duas das mais significativas são o educar a inteligência e o educar a sensibilidade –
inseparáveis.
Entre nós, em nossa sociedade, essa educação está ligada à formação do leitor.
Um leitor capaz de leitura sensível e crítica, tanto dos textos como da vida. Capaz de
questionamento e de criatividade, não somente no ler, mas também no expressar-se.
Para essa formação, é imprescindível despertar o desejo de ler.
Existem diversos modos, muitos movimentos que podem ajudar a despertar esse
desejo de leitura. Um passo primordial é a religação com a existência, trazer a leitura
para  a vida,  trazendo  a  vida  para a leitura.  Dentre as diferentes possibilidades de
despertar, enumero algumas.
Contar histórias para as crianças. Ler para elas, ler junto com elas. Igualmente,
ler poemas. A leitura em voz alta é fundamental: cultiva a escuta poética dos textos,
assim como a escuta da natureza e da vida humana.
Buscar textos que tenham ressonância nas pessoas que estão sendo iniciadas à
leitura. Ressonância quanto aos temas ou quanto à linguagem. Um exemplo claro:
procurar narrativas com personagens e  enredos que tenham capacidade de despertar
empatia, identificação, pertencimento. Podemos propor exercícios de imaginação, como
os clássicos, de entrar na pele de uma personagem, recriar o narrador, mudar o desfecho,
criar outros tempos e espaços, fazer outros diálogos etc.
É preciso também aproximar as pessoas de textos que inquietem a sensibilidade
e o pensamento com questões existenciais, do sentido da vida, nos vários significados
da palavra sentido: sensação, sentimento, rumo, significação.
Textos com a percepção corpo a corpo com o mundo, suas descobertas, seus
ocultamentos. Os campos sensoriais e suas possibilidades de admiração.
Textos com enredos  que ressoem emocionalmente, como por exemplo com a
questão do desejo de amar e o desejo de ser amado.
Textos com indagações: de onde viemos, para onde vamos. Como fazemos as
travessias.  Os  companheiros  de  viagem.  Assim  também,  indagações  sobre  quem
realmente  somos,  o  que  significa  nossa  existência.  Nessas  questões,  uma  das
permanentes é o conhece-te a ti mesmo, inscrito nos pórticos do templo, em Delfos, que
atravessávamos para a escuta da voz do oráculo que indicaria sinais do que temos sido,
do que precisamos vir a ser.
Além  da  leitura  como  criação  e  recriação  de  sentido  para  a  vida,  outro
movimento é trazer textos com experiências lúdicas, que possibilitem o ato de ler como
alegria,  como  jogo,  como  liberdade.  Ler  com  olhos  leves.  Como  aventura.  Como
descoberta e invenção.
Muitos exercícios podem ser feitos a partir da leitura. Podemos ler e reescrever o
texto,  criar  um  novo  título,  reconhecer  palavras-chave  e  frases-síntese,  mudar  a
sequência dos parágrafos, fazer um desenho, desenvolver uma dramatização, relacionar
à fotografia ou a filmes, produzir um vídeo etc. Podemos também fazer uma antologia:
de textos semelhantes, complementares ou opostos, tanto a partir do tema como da
linguagem. São inúmeras as possibilidades.
Outro campo fecundo é o de pesquisar sobre as relações entre texto e contexto: a
vida do autor, seu tempo histórico, a sociedade em que vive, o chão de onde escreve etc.
São apenas algumas sugestões. Em todas, a convivência com livros é necessária,
em  casa,  na  escola,  em  espaços  comunitários,  em  bibliotecas  públicas. Também  é
necessário  conversar  sobre  as  experiências  de  leitura,  como  por  exemplo  criando
círculos de leitores, em que cada um fala dos livros lidos, sugere leituras que façam
sentido, que despertem o gosto de imaginar, de sentir, de viver.
É  imprescindível  conversar  sobre  os  livros.  Relacionar  as  leituras  com  as
histórias  de  vida.  De  modo  especial,  falar  dos  textos  mais  amados,  os  que  não
esquecemos, os que fazem parte de nós.
A convivência com os livros é encontro humano. Esses círculos de leitura– nas
casas,  nas  escolas,  nas  comunidades,  nos  movimentos  sociais  –  possibilitam  o
reencontro da alegria de conviver, tantas vezes esquecida.
É verdade que aprendemos a ler, lendo; aprendemos a escrever, escrevendo. No
entanto,  é  preciso  o  encontro  humano,  a  conversa,  a  circulação  das  vozes,  o
compartilhar as histórias.
Esta é uma idéia matriz: despertar o desejo de ler, que não se separa do desejo de
pensar, de sentir, de viver, de conviver. Essa reaproximação com a vida é essencial. Sem
essa religação, a leitura raramente floresce, a não ser quando os livros substituem o
mundo, e o ato de ler pretende ocupar o vazio do que é deixado de viver. Não é essa a
nossa proposta, mas a da leitura como uma das dimensões da vida.
Assim, reitero: uma questão fundamental é despertar o desejo e religar a leitura
com o sentido da vida. Não se pode impor a leitura, nem desfigurá-la em uma atividade
mecânica,  nem  reduzi-la  a  fins  imediatamente  utilitários,  nem  desnaturá-la  em
questionários com perguntas burocráticas, sem sensibilidade nem imaginação.
Daniel Pennac, em Como um romance (2008), faz um decálogo com os direitos
de leitor, exposto na contra capa de seu livro:
Direitos do leitor
1. O direito de não ler.
2. O direito de pular páginas.
3. O direito de não terminar um livro.
4. O direito de reler.
5. O direito de ler qualquer coisa.
6.  O  direito  ao  bovarismo  (doença  textualmente
transmissível).
7. O direito de ler em qualquer lugar.
8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
9. O direito de ler em voz alta.
10.O direito de se calar.
A leitura é uma experiência de liberdade. Uma forma de viver, de criar e recriar a
vida.
Despertado o desejo de ler, muitas vezes inicia-se uma longa convivência, um
duradouro amor, uma travessia de existência inteira.
Alberto Manguel, em História da Leitura  (1997), faz uma celebração do amor
aos livros e ao ato de ler. Na contra-capa, são enumerados alguns exemplos:
Leitor  voraz  e  ciumento,  um  grão-vizir  da  Pérsia
carregava sua biblioteca quando viajava, acomodando-a
em quatrocentos camelos treinados para andar em ordem
alfabética. Em 1536, a Lista de preços das prostitutas de
Veneza anunciava uma profissional que se dizia amante
da poesia e tinha sempre à mão algum livrete de Petrarca,
Virgílio ou Homero. Na 2ª metade do século XIX, em
Cuba,  os  operários  de  algumas  fábricas  de  charuto
pagavam um  lector,  um leitor que se sentava junto às
bancadas  de  trabalho  e  lia  alto  enquanto  eles
manuseavam  o  fumo.  Lia,  por  exemplo,  romances
didáticos, compêndios históricos e manuais de economia
política. A ditadura de Pinochet baniu o  Dom Quixote,
identificando ali apelos à liberdade individual e ataques à
autoridade instituída.
A  leitura  é  a  mais  civilizada  das  paixões.  Mesmo
quando registra atos de barbarismos, sua história é uma
celebração da alegria e da liberdade.
O leitor como coautor
O poema não é uma forma literária,
mas o lugar de encontro
entre a poesia e o homem.
O leitor procura algo no poema,
e não é insólito que o encontre:
já o trazia dentro de si.
Octavio Paz
O  texto  é  um  campo  de  possíveis  significações,  especialmente  o  poético,
tessitura de muitos sentidos.
A idéia do leitor como co-autor, uma vez que ele descobre e estabelece relações,
a partir do conjunto de possibilidades propiciadas pelo texto, está presente em muitas
abordagens teóricas que reconhecem a elaboração ativa do sujeito que lê e, ao ler faz
escolhas, analisa, inter- relaciona, dialoga, entretece novas conexões entre o texto e a
vida.
Uma das vertentes que reconhece o papel ativo do leitor na produção de sentidos
é o pensamento de Bakhtin. A partir dele, Wanderlei Geraldi escreve, em  Portos de
Passagem, sobre a atividade dialógica presente na leitura:
O produto do trabalho de produção se oferece ao leitor, e
nele se realiza a cada leitura, num processo dialógico
cuja trama toma as pontas dos fios do bordado tecido
para  tecer  sempre  o  mesmo  e  outro  bordado,  pois  as
mãos que agora tecem trazem e traçam outra história.
Não são mãos amarradas – se o fossem, a leitura seria
reconhecimento de sentidos e não produção de sentidos;
não são mãos livres que produzem seu bordado apenas
com os fios que trazem nas veias de sua história – se o
fossem, a leitura seria um outro bordado que se sobrepõe
ao  bordado  que  se  lê,  ocultando-o,  apagando-o,
substituindo-o.  São  mãos  carregadas  de  fios,  que
retomam  e  tomam  os  fios  que  no  que  se  disse  pelas
estratégias de dizer se oferecem para tecedura do mesmo
e outro bordado. É o encontro destes fios que produz a
cadeia de leituras construindo os sentidos de um texto.
(1997, p.166).
A leitura poética desperta e intensifica essa atividade do leitor, porque vai muito
além da esfera das idéias, do pensar por conceitos. O poema pensa por imagens, ritmos,
sentimentos – indissociáveis das idéias.
Mais intensamente do que nas outras leituras, a poética conjuga distanciamento e
pertencimento.
Distanciamento, porque é um ver com outro olhar, ver o ainda não visto, ver o já
visto – mas com olhos novos, como escrevia T.S.Eliot .
Pertencimento,  porque  desperta  identificações,  semelhanças,  convergências,
ressonâncias, empatias.
Muitas vezes nos reconhecemos em um texto: ele parece falar diretamente a nós.
Assim,  na  alquimia  da  leitura  poética,  descobrimos  a  nós  mesmos  e  aos  outros,
descoberta  que  é  também  um  ampliar  as  margens  da  consciência,  um  alargar
possibilidades de vir a ser.
Com os poemas, com a leitura sensível e criadora, o leitor se reconhece como
co-autor: revive as imagens.
Mais algumas considerações de Todorov:
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão
quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar
ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos
cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos
ajudar  a  viver.  Não  que  ela  seja,  antes  de  tudo,  uma
técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação
do  mundo,  ela  pode  também,  em  seu  percurso,  nos
transformar  a  cada  um  de  nós  a  partir  de  dentro. A
literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é
preciso  tomá-la  no  sentido  amplo  e  intenso  que
prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é
marginalizado,  quando  triunfa  uma  concepção
absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que
continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar
sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos
e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si
mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse
leitor  não  tivesse  razão,  a  leitura  estaria  condenada  a
desaparecer num curto prazo. (2009, p. 76-77).
Em nosso tempo, convivemos cotidianamente com a crise da palavra, da leitura,
da literatura  e da poesia. Convivemos também com muitos sinais de  resistência  e
renascimento. Disseminam-se por toda a parte contadores de histórias. Disseminam-se
grupos de leitores, rodas de leitura, saraus, encontros literários.
Considerações finais
Tudo se torna poesia quando olhamos de dentro...
porque poesia é ciência, é o sopro do mesmo
espírito pelo qual a natureza vive.
Emerson
Viver a poesia é muito mais necessário
e importante do que escrevê-la.
Murilo Mendes
A convivência com a poesia desperta e desenvolve a leitura nas entrelinhas, a
escuta de outros sentidos, no texto e para além dele, na vida – a de cada um e a de todos.
Educa a sensibilidade, a inteligência, a imaginação. Possibilita a redescoberta da
experiência, de muitos milênios, de ler o que nunca foi escrito,  ler o mundo  – essa
metáfora antiqüíssima.
Nesta concepção, a poesia possibilita reconhecer o mundo como texto – sempre
inacabado, em movimento, entretecido por múltiplas vozes. A poesia também nos educa
a escrever o mundo, que é sempre um reescrever.
Nessa leitura e nessa escrita, podemos nos reconhecer uns aos outros, uns nos
outros. Esta é a utopia poética, o que ainda não existe, mas precisa existir: a existência
como um poema, entretecido com os fios que ligam história e poesia, ligam o que foi e
o  que  poderia  ter  sido,  assim  como  evocam  e  invocam  o  que  pode  vir  a  ser  –
cotidianamente, constelarmente.
Referências bibliográficas
ANTÔNIO, Severino. O visível e o invisível. Campinas, SP: Verus editora, 2008.
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1987.
BORDELOIS, Ivonne. A palavra ameaçada. Rio de Janeiro: Vieira et Lent, 2005.
CALVINO, Ítalo.  Seis propostas para o próximo milênio.São Paulo: Companhia das
Letras,1990.
CANDIDO, Antonio.Vários Escritos. 3ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
GERALDI, João Wanderlei.  Portos de passagem. 4ªed. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
MANGUEL, Alberto.  Uma História da Leitura.   São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco/L&PM, 2008.
SARAMAGO, José.  Prémio Nobel: Discurso de José Saramago na Academia Sueca.
Disponível  em:  http://www.g-sat.net/nobel-da-literatura-2404/premio-nobel-discursode-jose-saramago-na-academia-sueca-341357.html#ixzz1Db1rOuIHacesso em 27 mar
2011.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL